AlmArdente

De tudo se fala do que possa habitar uma qualquer alma humana. Os amores e desamores, as artes e os vícios, os prazeres e as dores. Intensas banalidades, para miúdos e graúdos.

sexta-feira, maio 02, 2008

Uma sucessão de acontecimentos trouxe-me até aqui. Toda a gente tem a sua própria sucessão de acontecimentos, seja isso destino ou pura casualidade (pergunta que há-de continuar sem resposta). No meu caso, tenho andado um pouco sem objectivos delineados e as coisas vão surgindo em sequências felizes, coincidências sortudas e acasos providentes.
Assim vim parar a Santa Maria.
Santa Maria, Açores. Um pedaço de terra no meio do mar, parado no tempo e sem desenvoltura à vista.
Ao fim duns meses nesta ilha, já posso falar dela com conhecimento de causa (é bom ter conhecimento das causas para falar das cousas).
Ilha de Santa Maria: 17 km por 9 km. Metade da ilha é uma vasta planície, separada da metade montanhosa por uma serra que divide a ilha ao meio. Paisagens deslumbrantes onde o verde impera, a ilha é um regalo para a vista. Clima ameno o ano inteiro, é a ilha mais quente e seca do arquipélago - por isso chamada de "Ilha do Sol".
Foi a primeira ilha a ser povoada, tem traços arquitectónicos marcadamente sulistas e tudo o mais pode ser confirmado nos livros de história e nos roteiros turísticos. O que não consta nuns nem noutros, é a dimensão humana da vida em Santa Maria.
Chegou a ter perto de 20.000 habitantes. Com a América aqui tão perto, a emigração levou quase toda a gente à procura duma vida melhor. Como no resto das ilhas, aqui vivia-se em pobreza, em condições precárias. Viviam-se vidas duras e esquecidas. A verdade, sem adornos, é que as ilhas foram e são uma espécie de baú dos portugueses do continente: sabe-se que existem, mas não se mexe. É deixar estar. De vez em quando vem um ministro, cada novo Presidente da República faz a sua visita oficial e fica tudo na mesma. Como quando se vai ao sotão abrir o baú para matar saudades. Depois fecha-se por mais uns anos. Quem cá está, que trate de si.
Em Santa Maria esse esquecimento faz-se sentir de forma mais acentuada. É das ilhas mais pequenas, satélite de São Miguel, muito mais próspera e desenvolvida.
Aqui anda-se devagar. Falta comércio, falta indústria, faltam serviços. Falta gente!
Vivem cá cerca de 5000 pessoas. Muito pouco, para tanta casa abandonada. Muito pouco para o potencial da ilha. Para essas 5000 pessoas, há uma rua com algumas lojas, um ou dois restaurantes dignos desse nome, uma sessão de cinema por semana, duas bombas de gasolina, duas agências bancárias, uma farmácia, e os serviços básicos a que qualquer cidadão nacional pode aceder.
Não há pastelarias - há tascas e cafés. Não há super-mercados - há mercearias. Faltam lojas especializadas, falta muita coisa. E no entanto, uma pessoa habitua-se a este ritmo de província marítima e tudo isso passa a ser secundário.
Tenho cabras no quintal. O quintal tem árvores de fruto. Aos fins-de-semana sou pescador. E assim se vai vivendo, todos têm várias formas de sustento. O taxista tem uma pensão e é criador de porcos. O lojista tem gado nos pastos. O pedreiro tem um barco de pesca. E no centro de saúde, os médicos faltam às consultas para depois receberem os pacientes nos seus consultórios particulares (há coisas que nunca mudam).
Como aqui não se produz nada, a ilha depende do barco. O barco chega de duas em duas semanas carregado de contentores: gado, automóveis, mobílias, roupas, leite e bolachas e tudo o que se possa imaginar, é transaccionado no porto de 15 em 15 dias. Se está mau tempo e o barco não pode atracar, a ilha fica suspensa.
Faz falta dinheiro bem empregue. Dinheiro que traga bons projectos de desenvolvimento, a começar por uma melhor política de transportes. Fazem falta pessoas, mas há que lhes dar condições. E o que tenho visto é uma série de erros de gestão, erros organizacionais ao nível dos governos, do poder local, das próprias empresas que por cá estão. É cada um por si nesta luta pela sobrevivência, sem olharem ao bem comum. Acima de tudo, é isso o que causa mais impressão: são pessoas demasiado complicadas numa terra demasiado pequena. É uma gente muito conflituosa e pessimista. Pessoas sem visão de conjunto, sem ideias de progresso, agarradas aos seus mundinhos e sem ideias de melhoria.
E assim se vai passando o tempo numa terra parada. Olha-se o horizonte à espera de algo novo, mas só se vê mar pela frente.
Gosto de cá estar, gosto desta vida, mas não sou de cá. Isso dá-me uma capacidade de análise diferente, mais objectiva, mas não indiferente. Porque tenho realmente desgosto em ver que há um Portugal de segunda, seja aqui ou nas Beiras, ou no interior do Alentejo. Percorrendo o país, sem ser em passeio turístico, vejo a desgraça real. É mais triste e séria do que mostram na tv.
Agora estou em Santa Maria, um dos nove pedaços de paraíso esquecido no meio do Atlântico. E vou tirar o máximo proveito desta etapa da minha vida.